É importante sempre salientar que os textos que elaboro sobre os trabalhos de Gabriel Villela são observações sobre as suas criações, ressaltando aspectos marcantes da montagem, mas sem deixar de lado a emoção que sempre aflora ao prestigiar o seu ¨teatro magia¨.
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Está em cartaz, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, Estado de Sítio, de Albert Camus, na visão cênica do diretor Gabriel Villela.
É o teatro de Villela que, através da magia e da poesia, fala de um assunto extremamente atual e oportuno: o autoritarismo. Villela também assina a adaptação e os figurinos,
Na trama, após os maus presságios pela passagem de um cometa, os habitantes de Cádiz, na Espanha, passam a ser governados pela Peste, que assume o poder através de um golpe; ela institui um governo arbitrário por meio da ameaça de morte a todos que não aderirem às regras impostas.
A população vive sob o Estado de Sítio. O medo é que mantem o poder nas mãos da Peste (vivida por Elias Andreato) e também nas mãos de sua secretária, vivida por Claudio Fontana.
A única maneira da Peste ser vencida é através da superação do medo. O amor e a ânsia pela liberdade precisam prevalecer para que a paz seja reestabelecida.
A alegoria do autoritarismo ganha força com o grotesco, para ressaltar o horror da epidemia que é física e também afeta a política.
O clima é sombrio, mas a magia e a delicadeza do teatro permanece nessa fábula. O lado obscuro da vida é evidenciado através de símbolos fortes e deixa visível o valor da liberdade para que a existência humana tenha sentido.
Uma nuvem negra, uma teia pesada e das trevas está em cena, superior, quase sufocando a cidade de Cádiz com uma energia negativa que é resultado da situação lastimosa da população.
O equilíbrio foi perdido e o limite entre vida e morte é muito tênue. Ainda existe a esperança e ela está impressa nas cores quase escondidas dos figurinos e elementos de cena. O ser humano está mergulhado num mar de interesses escusos. Será que o amor e a ânsia pela liberdade de Diego é tão forte que será capaz de ajudar o seu povo a acabar com a Peste e sua secretária?
As cenas evidenciam a turbulência vivida pelos seres humanos que estão paralisados pelo medo e que têm no herói Diego o grito de rebeldia contra a exploração que atinge limites absurdos.
Como ponto forte e delicado, a música está presente. O coro traz arranjos polifônicos ao entoar canções revolucionárias. A música é um fio de esperança em Cádiz. O canto ecoa sem o uso de microfones e por isso ele ganha uma força enorme diante do caos instaurado.
Mais uma produção de Fontana (através da BF Produções) que merece muitos aplausos. Ele integra um elenco de alta competência formado por 14 atores: é complicado dar destaque para alguns atores, pois todos estão em plena sintonia (alguns vivem vários personagens e têm várias funções no palco, as quais são realizadas com competência).
Fontana e Andreato são atores que se encontram mais uma vez no palco e dão um show em cena. Andreato leva para a cena a volúpia de alguém que precisa dominar para viver. Sem dominar, vale dizer, a vida para a Peste não tem sentido. Andreato é um ator que provoca emoção, um mestre da atuação.
Já a Morte/Secretária, está animalizada diante do poder. Um poder que encanta, mas que também causa esgotamento.
Fontana é ator totalmente entregue em cena. Corpo e voz a serviço de uma interpretação plena e que ganha magnitude com a parceria de Andreato. Claro que o figurino e o visagismo contribuem para a criação das personagens, mas a sua sensibilidade para que a emoção aflore, sem deixar a técnica de lado, é notória.
As entradas de Nathan como O Cometa são impactantes e delimitam o quanto a história apresentada traz a típica magia de Gabriel Villela, o seu rigor estético, valorizando também a palavra. Cacá Toledo merece elogios especiais como o Padre; Rosana Stavis, grande dama do teatro curitibano, mostra todo o seu vigor de interpretação e canto vivendo a mulher do Juiz.
Chico Carvalho e o seu Nada são de uma ironia avassaladora, expondo a hipocrisia humana. Chico e Fontana são os responsáveis pelas cenas finais de grande impacto e que mostram todo o talento de Gabriel para criar as magias que tanto são temas das matérias no De Olho na Cena.
Pedro Inoue e Marina Elisabetsky, Diogo e Vitória, e a força do amor para tentar salvar o mundo. Inoue também protagoniza um momento-chave que traz a fala de um jovem que perde o medo e expressa toda a sua fúria em busca da liberdade.
É essencial a realização de um teatro tão pulsante nesses tempos sombrios!
Como elaborar um texto que não seja recheado com pura emoção, se Estado de Sítio é puro encantamento?! Um dos grandes encantamentos no trabalho do diretor, vale dizer, é a magia ganhando força através de objetos que no palco ganham novos significados.
O simbólico na direção de Villela é preciosidade. O talco que cai das mãos do Cometa e o pano azul que recebe o Nada no final da encenação são alguns exemplos da criação que emana poesia para falar de um assunto complexo de maneira consistente, mas sem deixar que a arte emane com toda a sua delicadeza.
Estado de Sítio marca o encontro de artistas que acreditam que a poesia é o meio para driblar o caos do cotidiano e refletir sobre ele também, mas sem deixar o belo de lado.
A arte presente em Estado de Sítio é meio de reflexão, sem entregar respostas prontas ao público mas, sim, dar ao espectador a oportunidade de pensar e obter respostas de acordo com a sua experiência de vida. Quem pode fazer prováveis comparações com o nosso tempo é quem assiste ao espetáculo.
Não existe o objetivo de assumir um viés político e a ideia é fugir do tom panfletário, mas o espetáculo não deixa de ser político no sentido de colocar em questão o quanto os desmandos de um governo são destruidores de uma sociedade.
O autoritarismo é inadmissível e nesse trabalho isso está explicito. Camus não está do lado de nenhuma ideologia política, para ele tanto a esquerda quanto a direita, quando usurpam e abusam do poder, são abomináveis. Gabriel respeita essa posição do autor; respeita sempre, aliás, os textos que dirige. A adaptação é fiel ao texto original.
A temporada vai até o dia 16 de dezembro, de quinta a domingo.
Mais informações https://www.sescsp.org.br
otos de Andreia Machado e João Caldas
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