Boca de Ouro é um deslumbramento! Preciosismo no trabalho do diretor, do elenco, equipe criativa e técnica
Com Malvino Salvador, Lavínia Pannunzio, Mel Lisboa, Claudio Fontana, Chico Carvalho, Leonardo Ventura, Cacá Toledo, Mariana Elisabetsky, Jonatan Harold e Guilherme Bueno.
Chegue um pouco antes da sessão para dar tempo de você se emaranhar de ouro, o ouro que é a obsessão do Boca de Ouro e já está presente nas almofadas das cadeiras que abrigam o espectador.
Sobre a trama:
Boca de Ouro era famoso no subúrbio carioca, com vários apelidos, entre eles Drácula de Madureira. Nasceu numa gafieira de maneira vulgar e para satisfazer um sonho troca os seus dentes por dentadura de ouro e faz um caixão também de ouro, e diz que quando ele estiver pronto, pode morrer sossegado.
Ao ser assassinado, um jornalista, Caveirinha, tem a função de escarafunchar a sua vida. Procura Guigui, sua ex-mulher, que, com o seu caráter volúvel, conta três versões sobre a sua história. E os personagens são típicos de Nelson Rodrigues: retratam a miséria humana, pois são interesseiros, megalomaníacos, perturbados, hipócritas, retratos de uma sociedade preconceituosa e doente em muitos aspectos, sobretudo morais.
O Boca de Ouro de Gabriel Villela
Boca de Ouro, que estreou na semana passada no Tucarena, em São Paulo, é um espetáculo que traz luz, cor, música e brilho para o palco. Conta uma história conhecida de quem aprecia teatro de uma maneira criativa.
A imaginação do diretor Gabriel Villela não tem limites, mas ele está sempre ancorado em técnicas precisas.
Essa imaginação sem limites do diretor faz com que a obra de Nelson Rodrigues ganhe uma versão que ultrapassa tudo o que já tive a oportunidade de ver com relação à encenação das peças desse que é considerado o nosso maior dramaturgo.
Gabriel já dirigiu Vestido de Noiva e A Falecida com muita competência, mas Boca de Ouro traz uma irreverência magnetizante, uma irreverência pautada, vale dizer, no conhecimento profundo do teatro em geral e de Nelson Rodrigues (Gabriel foi aluno de Sábato Magaldi e usou todo o seu aprendizado sobre o dramaturgo para a criação desse espetáculo).
O diretor sempre cita em entrevistas a importância do professor para o aprimoramento do seu conhecimento). Essa é uma qualidade que, vale frisar, é pautada no amadurecimento profissional no decorrer dos anos, que traz ao artista uma experiência que garante um frescor impressionante.
Para dar vida às suas ideias, conta com profissionais muito gabaritados e a ajuda dos seus assistentes é sempre de grande valia. Ivan Andrade e Daniel Mazzarolo têm essa função.
Luz, arquitetura cênica - elementos de cena, figurinos, visagismo, trilha tocada - e cantada ao vivo - e o elenco formam um todo que atua em plena harmonia para que as ideias de Gabriel ganhem vida.
A interpretação dos atores (somente Malvino e Gui Bueno ainda não tinham participado de uma peça do diretor) é um grande trunfo, uma joia que Gabriel lapidou com maestria (contando com a ajuda de assistentes de direção que o acompanham em muitos trabalhos, Ivan Andrade e Daniel Mazzarolo). Contou também com a ajuda de Babaya, na preparação vocal, e Francesca Dela Mónica na espacialização e antropologia da voz, que garantem aos atores a técnica necessária para colocar a voz em cena de forma correta, dando veracidade aos personagens nas suas várias camadas.
Num tom melodramático, numa prosódia que transporta o público para os anos 50, começo dos sessenta, os atores dão sustentação à história e ao emaranhado de emoções e sensações que ela transmite... Vozes inspiradas no rádio e que nos levam para uma época de ouro.
O figurino, sempre superlativo, de Gabriel, além de muito belo, desenha com precisão as características dos personagens e tem como suporte a maquiagem de Claudinei Hidalgo e o grande talento do elenco para dar vigor à obra de Nelson Rodrigues.
Malvino merece elogios, apresenta todas as nuances da personagem, que é mostrada como um homem brutalizado e também como um lorde; louco, amante, bandido, apaixonante; Claudio Fontana está pleno, arrebatador como Leleco. Leva para o palco leveza, desenvoltura e vigor, com grande domínio da voz e do corpo; Mel Lisboa dá brilho à Celeste (esposa de Boca), uma mulher graciosa, interesseira, fútil e estabelece com Fontana (e com todos os atores com o qual contracena) uma química excelente; Lavínia Pannunzio é diva, intensa, entregue, tem a difícil tarefa de representar uma mulher volúvel, com várias faces e faz o seu trabalho com elegância e competência
Chico Carvalho, como o repórter Caveirinha, tem a tarefa de levar para o palco a malícia, o jogo de cintura e a falta de brios de quem está em busca de notícias de cunho sensacionalista. O ator, que interpreta também Maria Luísa, se desdobra entre os dois personagens e transita de um para o outro com uma rapidez mágica; eles se misturam, inter-relacionam e abrem o caminho para o desfecho da peça; Leonardo Ventura é o marido de Guigui, com presença marcante em cena pela postura corporal e força na interpretação.
Mariana Elisabetsky canta divinamente e tem uma presença intensa, uma crooner que está acompanhada de um pianista (Jonatan Harold) e tem a tarefa de pontuar as cenas e dar a elas um tom trágico, valorizando o teor simbólico e mítico que as cenas possuem.
A trilha e o canto de Mariana reforçam o melodrama de uma maneira impactante e a emoção que as cenas propõem ganha uma dimensão superlativa. Uma trilha que evidencia também lindas canções da história da nossa MPB, que tocam fundo na alma.
Diálogos e falas entremeados por sons de máquinas de escrever e jornais com as suas páginas reviradas, que terão o registro de relatos distintos, opostos e que trazem consigo a interrogação: qual das histórias sobre Boca e sobre os personagens com os quais teve contato é verdadeira...? (se é que alguma delas possui mesmo algo de verdadeiro)! Um tapa na cara nos seres humanos doentios, nas hipocrisias sociais e em quem vive da exploração do outro!
Completam o elenco Cacá Toledo e Guilherme Bueno (Iansã que pontua a morte, nesse espetáculo em que o limite entre a vida e a morte é tênue), presenças essenciais para dar suporte às cenas e sentido à trama.
Como a gafieira é a ambientação, cenário assinado por Gabriel Villela, as movimentações em cena seguem os passos do samba de gafieira (em certos momentos, alguns literalmente, a dança serve como a inspiração para as expressões corporais dos personagens) e a arena do teatro é explorada em toda a sua plenitude.
Um dos grandes destaques do trabalho de Villela, que demonstra o quanto o diretor tem como premissa despertar a capacidade do espectador de imaginar, objetos ganham novas funções em suas mãos, novos significados.
Uma escada, um dedal, a serpentina e o confete que podem significar o belo, a festa, mas também servir de apoio para a dor; o colar de pérolas que sufoca e mata, entre tantos outros objetos presentes na cena, ajudam nas ambientações ou mesmo na caracterização dos personagens, das personalidades dos mesmos, e reforçam o sentido das várias narrativas e tragédias presentes na obra.
O espetáculo tem humor, um humor inteligente, o que mostra que Nelson Rodrigues tem, sim, essa característica nas suas criações. O texto traz toda a sagacidade e hipocrisia de pessoas que têm valores questionáveis ou mesmo cometem crimes sem nenhum problema de consciência.
Boca é bicheiro, e dizem, assassino; Leleco (Claudio Fontana) e Celeste (Mel Lisboa) fazem tudo por dinheiro (de que adianta a consciência tranquila quando o sonho maior é conhecer Grace Kelly e nunca mais andar de lotação!); Guigui (Lavínia Pannunzio) mente em nome do amor insano e da sede de vingança.
Nelson Rodrigues foi jornalista policial e conhecia muito bem o sensacionalismo da imprensa, que está impresso na trama. Tragédias pessoais acontecem e a imprensa explora sem dó nem piedade a vida alheia sem a preocupação em mostrar a verdade dos fatos (afinal, Guigui traz várias versões de Boca e como saber qual é a verdadeira?). Na era do ¨fake news¨, o negócio é vender e dar audiência: quanto mais tragédia, melhor!
O sangue do vampirismo de Boca é o sangue que promove asco e chama a atenção para a figura megalomaníaca do protagonista que é temido por muitos, amado por outros e que também gera a curiosidade de todos que conhecem a sua fama... O sangue que também é encantamento porque contém toda a magia do universo criativo de Villela.
Como Gabriel Villela mesmo diz, estamos vivendo nas trevas e, acrescento, as trevas do desrespeito, da impunidade, da ganância que causa tragédias e o espetáculo é uma obra-prima bem-cuidada que mostra o quanto a trama de Nelson Rodrigues (a peça foi escrita em 1959) continua atual.
E ainda, vale dizer, essas trevas estão impressas na encenação. Existe beleza e poesia, mas as cores avassaladoras típicas do diretor dão lugar a um tom comedido na luz, nos figurinos e elementos de cena, mas não menos precioso e magnetizante... as trevas da vida, da mesquinhez e contradição humana e da gafieira onde Boca foi parido numa pia!
Boca de Ouro é o nosso Brasil. Mistura de cor, beleza, trevas, dor, amor; país de muitas ações escusas, mas que também traz uma mistura de religiosidades, crenças. Um Brasil onde a arte brilha em todos os lugares e instâncias e que nos mostra que ainda existe uma luz no final do túnel. A arte que provoca reflexão e nos comove.
Só a arte para nos salvar! E Gabriel com seu ¨teatro magia¨, promove o encontro do público com um teatro onde imperam a beleza e a poesia, que para o diretor são os meios mais eficazes para que o mundo se torne mais interessante e as pessoas, através do encantamento, se tornem mais sensíveis e, consequentemente, altruístas.
E saímos do teatro prontos para uma vida um pouco mais interessante e a cabeça fervilhando com as informações que a montagem traz!
Elenco, ficha técnica/criativa e serviço:
Com Malvino Salvador, Lavínia Pannunzio, Mel Lisboa, Claudio Fontana, Chico Carvalho, Leonardo Ventura, Cacá Toledo, Mariana Elisabetsky, Jonatan Harold e Guilherme Bueno. no #Tucarena. #gabrielvillela #bocadeouro
Serviço
Duração: 100min. Teatro Tucarena. Sex e Sáb 21h, Dom 18h30. R$ 50 (sex), R$ 50 e R$ 70 (sáb e dom). Gratuidade a portadores de deficiência. Classificação 14 anos. Estreia 11/8. Até 29 de outubro. Ingresso: www.ingressorapido.com.br.ou bilheteria do teatro.
http://www.teatrotuca.com.br/espetaculos/boca-de-ouro.html
Ficha Técnica
Texto: Nelson Rodrigues. Direção, Cenografia e Figurinos: Gabriel Villela. Iluminação: Wagner Freire. Direção Musical e preparação Vocal: Babaya Morais. Espacialização vocal e antropologia da voz: Francesca della Monica. Pianista: Jonatan Harold. Diretores assistentes: Ivan Andrade e Daniel Mazzarolo. Foto: João Caldas. Produção executiva: Luiz Alex Tasso. Direção de produção: Claudio Fontana.
Vale a pena ler o texto do Merten, onde ele fala da encenação nos mínimos detalhes e coloca com muita propriedade observações sobre a concepção estética do espetáculo
http://cultura.estadao.com.br/blogs/luiz-carlos-merten/expressionismo-e-melodrama-no-dracula-de-madureira-o-boca-de-gabriel-vilela/
Texto para divulgar a estreia
Por Nanda Rovere
http://www.deolhonacena.com.br/index.php?pg=3a3b&sub=251#linha
E sobre Imaginai, que conta a trajetória de Gabriel Villela no teatro – Textos de Dib Carneiro Neto e pesquisa das fotos por Rodrigo Audi
http://www.deolhonacena.com.br/index.php?pg=3a2b&sub=223#linha
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