MÃE UBU∞Se eu fosse você, eu metia essa bunda num trono.
Você podia enriquecer infinitamente, comer linguiça o dia inteiro e
ostentar sua carruagem pela cidade.
O diretor Gabriel Villela deixa a sua criatividade fluir sem amarras,
com a imaginação infinita de um artista que estuda muito e possui
um talento enorme.
O seu imaginai não tem limites e está pautado num grande
conhecimento da história do teatro, dos movimentos artísticos e da
percepção sensível da realidade em que vivemos.
Como grande admiradora e pesquisadora da sua trajetória, escrevo
um texto com observações sobre o seu trabalho, mas não o chamo
de observações crìticas porque Villela desperta-me uma emoção e
um encantamento tão grande que se deixasse de lado toda a minha
admiração, não conseguiria tecer considerações sobre mais uma
realização desse artista mineiro, o espetáculo Ubu Rei.
As observações:
O artista tem uma sensibilidade aguçada e tem a capacidade de
colocar em voga problemas urgentes para a sociedade,
aprimorando o senso crítico do indivíduo, tratando de problemas
universais e explorando a alma humana.
O diretor de teatro Gabriel Villela acabou de estrear o espetáculo
Ubu Rei, com o Grupo Os Geraldos de Campinas.
A trama é simples e muito bem construída: o pai Ubu, impulsionado
por sua esposa Mãe Ubu, arquiteta a morte do Rei da Polônia para
assumir o trono.
A sede de poder é enorme e tudo vale em nome do dinheiro e da
ambição desenfreada. É um homem covarde, um anti-herói que
certamente é um dos personagens mais deploráveis da dramaturgia
mundial e, por isso mesmo, instigante por colocar em evidência o
quanto o ser humano pode ser digno de lástima.
Assim que consegue realizar o seu desejo, Ubu mostra o quanto é
mesquinho e trai todos que o apoiaram. É um ser nojento, grotesco.
A peça Ubu Rei foi escrita em 1896 e Pai Ubu é a alegoria do
político estúpido, sem brios, num texto que traz referências de
Shakespeare, especialmente da peça ‘Macbeth’, com a figura de
Lady Macbeth, que assim como a Mãe Ubu é quem induz o marido
a conspirar contra o Rei e conquistar o poder.
O protagonista encarna a alegoria do político estúpido,
intratável, que se torna rei trapaceando e governa na base de
atrocidades contra o povo e aliados. A tradução é dos irmãos
Bárbara e Gregório Duvivier.
Villela e Os Geraldos carregavam o desejo de levar Ubu Rei ao
palco faz um tempo e o momento para a estreia não poderia ser
mais propício: eleições presidenciais onde o que estava em jogo era
a democracia ou o desrespeito, o preconceito, o descaso, usando
em vão o nome de Deus e pregando uma moral pautada pela
hipocrisia.
A estreia ocorreu, portanto, num momento muito especial do nosso
país e essa peça mostra o quanto o artista está plugado na
urgência que um tema merece ser explorado.
Ubu Rei é o segundo encontro profissional entre Villela e Os
Geraldos. Enquanto Cordel do amor sem fim, de Claudia Barral,
prima pela poesia e o encantamento, com a delicadeza típica do
imaginai do diretor, Ubu Rei leva para o palco o grotesco que é
característica dos personagens, com cenas em que a falta de
qualquer senso de pudor dos personagens é mostrada de uma
maneira sarcástica e divertida.
São personagens que além de carregarem consigo um caráter vil
em todas as ações que cometem, têm um linguajar vulgar.
A opulência visual, sempre presente nos trabalhos de Gabriel
Villela, é marcante também em Ubu Rei. Além da direção, o artista
assina o cenário e o figurino.
O cenário recheado de simbologias, a música (a trilha sonora é
sempre essencial no imaginai do diretor e desta vez traz pérolas
como Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros; Homem
com H, de Antônio Barros; Canção da Despedida, de Geraldo
Azevedo e Geraldo Vandré; Bella Ciao; Todo Menino é um Rei, de
Nelson Rufino). Os figurinos são belos e também recheados de
simbologias.
Referências étnicas e tribais nos conectam com os absurdos
cometidos em nome do poder e do desenvolvimento: invasão de
terras indígenas, desmatamentos e por aí vai...Detalhes estilizados
e que trazem para o palco influências do universo circense que
Villela traz na alma, evidenciam o tom sexual e escrachado que
muitas cenas contém.
O ¨Brasil tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza¨ está
presente nessa encenação de uma maneira inteligente, que fala das
mazelas do poder e o quanto o ser humano chega ao fundo do poço
da insensatez em nome de uma ganância desprezível!
Villela homenageia os mortos de Covid no Brasil e os seus
familiares, especialmente os manauenses e manauaras, ponto mais marcante da sua
cenografia.
O modo de falar de políticos conhecidos também merece atenção.
Logo de cara é possível reconhece-los e perceber a crítica contida
nas suas aparições em cena.
O autor dessa peça, Alfred Jarry, foi dramaturgo, romancista, poeta,
e inventou a Patafísica (¨ciência das soluções imaginárias), causou
furor em Paris com Ubu Rei, cuja estreia não lhe deu o sucesso
imediato, mas futuramente a sua obra influenciou os
artistas surrealistas, dadaístas e o chamado Teatro do Absurdo.
Villela explorou com precisão o universo de Jarry, criando um
espetáculo anárquico, debochado, divertido, crítico, sem deixar de
lado a poesia, a qual está presente, por exemplo, na cena em que
evoca a situação complicada da Itália com a ascensão de uma
primeira ministra que tem grande simpatia pelo fascismo.
Acreditamos que somos evoluídos diante de tantos avanços
tecnológicos, mas estamos numa era sombria, onde a ganância
pelo desenvolvimento a qualquer custo nos levou a uma destruição
enorme do meio ambiente e em pleno século XXI vemos núcleos
neo-nazistas se espalhando pelo mundo e a brutalidade cada vez é
assunto dos meios de comunicação, seja através de palavras ou via
atos racistas, homofóbicos e misóginos.
O Ubu e a sua família são patéticos. Como disse Oswald de
Andrade, a antrofofagia nos une¨ e a estupidez crônica, cotidiana,
pode nos levar ao fundo do poço.
A Polônia é a metáfora do Brasil e de todos os lugares em que a
política estiver contaminada por seres que não têm empatia alguma.
Ubu é um espelho certeiro da nossa realidade, uma realidade que
pode ser mudada através do poder que a arte tem de transformar o
mundo.
A arte é um meio de salvação do caos e o imaginai de Gabriel
Villela está mais aguçado do que nunca para proporcionar ao
espectador diversão e reflexão com muita competência.
O diretor tem uma criatividade infinita e as cenas fluem de maneira
deliciosa, com a interpretação de atores de muito talento.
Sobre Os Geraldos:
O grupo “Os Geraldos” já apresentou seu repertório em mais de
70 cidades de nove estados brasileiros, além de festivais nacionais
e internacionais em países como Marrocos, Argentina e Peru.
Recebeu 43 prêmios e, em 2017, foi indicado ao Prêmio
Governador do Estado, na categoria Territórios Culturais, reflexo do
intenso trabalho formativo que desenvolve em paralelo à criação e
circulação de seus espetáculos, contribuindo para o
desenvolvimento de artistas e grupos teatrais, sobretudo no interior
paulista.
Sobre Gabriel Villela:
Antônio Gabriel Santana Villela (Carmo do Rio Claro, 1958) é
um diretor de teatro, cenógrafo e figurinista brasileiro. Dirigiu
mais de 50 espetáculos entre adultos e infantis.
Estudou Direção na Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP).
É diretor, cenógrafo e figurinista. Iniciou sua carreira
profissional em 1989 com “Você vai ver o que você vai ver”,
de Raymond Queneau, e o “Concílio do Amor” de Oskar
Panizza. Desde então, recebeu prêmios Molière, Prêmios
Sharp, Prêmios Shell, Troféus Mambembe, 5 Troféus
APCA, Prêmios APETESP, Prêmios Panamco, entre
outros. Encenou Heiner Muller (Relações Perigosas),
Calderón de la Barca (A Vida é Sonho) William
Shakespeare (Romeu e Julieta, Ricardo III, Macbeth),
Nelson Rodrigues (A Falecida e Vestido de Noiva), Arthur
Azevedo (O Mambembe), Strindberg (O Sonho), João
Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina). Dirigiu a
trilogia de musicais do Chico Buarque para o TBC: “A
Ópera do Malandro”, “Os Saltimbancos” e “Gota D’Água”.
Dirigiu também “A Ponte e a Água de Piscina”, de Alcides
Nogueira. Dirigiu shows, musicais, óperas, dança e
especiais para TV. Foi Diretor Artístico do Teatro Glória /
RJ (1997/99) e também do TBC em SP
(2000/2001). Tornou-se um dos mais renomados diretores
teatrais com reconhecimento internacional, sendo
convidado a participar de Festivas nos EUA, Europa e
América Latina. Com o Grupo Galpão (“Romeu e Julieta”,
“A Rua da Amargura” e “Os Gigantes da Montanha”),
Gabriel foi convidado para a temporada no Globe Theatre,
em Londres, conquistando a crítica e o exigente público
londrino.
Seus últimos trabalhos foram Henrique IV, de Pirandello –
tradução e produção de Claudio Fontana – 2022; Proto
Henrique IV, exibição on-line e apresentado ao vivo direto
do Teatro Ruth Escobar/SP; e Estado de Sítio, de Albert
Camus, também produzido por Fontana, o qual esteve em
cena como A Morte – 2018/2019.
Foto de @stelauria.foto e Claudinei Hidalgo
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